
- Chegaste tarde. Outra vez.
Ignorei o seu choradinho fingido e atirei as sapatilhas para um canto do quarto. Levando as mãos atrás da cabeça, puxei a t-shirt e deixei-a cair no chão, voltando os dedos para os botões das calças. Dei-me ao trabalho de as arremessar para cima da cadeira onde ela dobrara cuidadosamente a roupa que usaria no dia seguinte. Sentei-me e descalcei-me, para depois me afogar na promessa de descanso incondicionalmente oferecida pelos lençóis alvos. O véu da noite de que eu escapara era frio. A cama morna surgia como uma recompensa pela loucura laboral do dia que tanto se prolongara.
Sabendo que não a ofenderia com esta atitude, deitei-me de lado, de costas para ela. Tudo para fitar as duas secções de vidro que iam quase do tecto ao chão do quarto. Habituáramo-nos, desde pequenos, a gostar de dormir sem ter as persianas corridas. Era uma das muitas manias que tínhamos em comum. Arriscando um olhar através das cortinas transparentes da janela que dava para a varanda, reparei que o céu límpido exibia arrogantemente uma lua-nova, demasiado bonita aos meus orbes exaustos. Lamentei não poder voltar a ser miúdo e, enrolado na minha capa desbotada do Dragon Ball, esgueirar-me até ao terraço e ficar ali, toda a noite, a admirar o céu estrelado suspenso sobre o raio verde da minha íris. Parecia-me um sacrilégio recusarmos a beleza selvagem e misteriosa da noite citadina, mas este era o preço a pagar pelo aconchego da nossa cama.
Mesmo envolto nesses pensamentos, não estranhei quando as suas mãos quentes procuraram o meu corpo, que o ar nocturno esfriara na curta viagem entre a porta do carro e a entrada do prédio. Estremeci quando os seus lábios molhados tocaram profundamente o lado esquerdo do meu pescoço. Vinte anos passados, aquele gesto continuava a fazer disparar o meu coração.
(Lembrei-me da primeira vez que ela se atrevera a fazê-lo. Tínhamos nove anos e estávamos sentados naquele muro que dava para a praia. O vendaval dessa tarde timidamente primaveril levara-nos a procurar calor num abraço. Olhando-me do fundo da sua cor de chocolate, ela encostara os seus cabelos acastanhados ao meu ombro e, esticando-se suavemente, colara os seus lábios gelados e gretados pelo vento à minha pele arrepiada…).
- Dia cansativo? – A sua voz ensonada murmurou-se.
- Muito. – Respondi, procurando as suas mãos, para colocá-las sobre a minha cintura.
Voltei-me de frente para ela, que, sorrindo maliciosamente, entrelaçou as suas pernas nas minhas.
- Andas a dar demasiada atenção ao teu chefe. O que é que a tua mulher há-de pensar?
- A minha mulher? – Sorri-lhe de volta, alinhando no seu jogo do gato e do rato. – Ai, a minha mulher...
Abraçámo-nos, apreciando cada inspiração, cada aperto, cada deslizar de pele. Respirei o seu perfume e, levantando-me da cama, murmurei:
- Vem cá.
- O que foi agora, não sentes o gelo que está? – Protestou ela, olhando-me intrigada, deliciosamente enroscada no leito.
Arranquei-lhe o cobertor macio de cima, rindo momentaneamente quando ouvi o seu queixume praguejado.
- Prometo-te que não terás frio. – Declarei, envolvendo-me no abrigo quente e sentando-me no sofá ao lado da janela. – Anda.
Ainda tiritando, saltou da cama no seu jeito de menina e atirou-se a mim com uma risada cristalina, forçando-me a partilhar o calor do cobertor. Silenciosos, fitámos a lua longamente até que ela encostou a sua cabeça ao meu peito.
E dei comigo a sorrir, pensando como, um para o outro, seríamos eternamente as mesmas crianças que se tinham sentado no muro que dava para a praia, naquela tarde timidamente primaveril.
Para a Chris