sábado, 10 de janeiro de 2009

No Lar das Virtudes

Noutro dia deu-me para dar um salto ao Lar das Virtudes e ir fazer um pouco de companhia à Justiça. Lá estava ela no sítio do costume – ao canto da sala comum, sozinha, a ler. Desta vez era uma cópia d’ O Principezinho. Em Braille, claro está, ou não fosse ela imparcial e virtuosamente cega.
- Boas tardes! Então, diga-me lá de sua justiça!
Nem respondeu à minha gracinha trocadilhada. Compreende-se. Tão farta está que a gozem… Demorou um bocado para me passar cartão. Ao fim de uns minutos, porém, encolheu os ombros e resmungou que a Honra era uma inútil, que a tinha deixado mal quando estavam a jogar à sueca. Olhei para trás. A Honra entretinha-se a fazer tricot ao lado da Lealdade, que adormecera sonoramente na poltrona, a cabeça grisalha pendendo para trás. Tentei confortar a Justiça; afinal de contas, a sua parceira há muitos séculos que vem sofrendo de profundas desconcentrações. Ela rosnou que para isso a Dra. Sociedade receitava umas pílulas, a Honra é que não as queria tomar.
Fez-me depois o relatório habitual da vida no Lar. O Amor, que tinha estado muito mal das costas, começava agora a revelar tímidas melhoras, também por dedicação da Amizade. Esta também já recuperara dos excessos alimentares do Natal, tem os diabetes controlados. Pior estava a depressão da Temperança. Acha a Justiça que a irmã mais nova nunca se vai recompor da morte do marido, o Altruísmo. A Compaixão, que estava a fazer palavras-cruzadas num dos sofás – ou a tentar, já que a visão está cada dia mais turva –, cismara anteontem que o Perdão (cleptomaníaco pela força das milenarmente repetidas desilusões) lhe roubara os óculos, tendo as manas Paz e Serenidade levado quase uma hora para a fazer entender que os tinha deixado na mesinha de cabeceira. Essas tinham enveredado em mais uma das suas teimosas horticulturas, arrastando consigo desta vez a surda Paciência (“Não sei para quê, aquela terra nunca dá fruto nenhum!”, reprovou a Justiça). Acabámos por rir juntas quando ela me falou do recente torneio de xadrez em que a Sabedoria ludibriara subtilmente a Caridade, brindando-a com um admirável xeque-pastor que deixou a filha do falecido Empenho amuada durante dias. Contudo, este último episódio deve ter feito a Justiça lembrar-se do que tanto a remoía interiormente quando eu chegara, uma vez que se endireitou prontamente e me contou, séria e firme, a sua desdita. Protestando contra a “desavergonhada falta de atenção e portanto indiscutível negligência” da sua parceira de jogo, deu-me a saber que a Honra lhe tinha metido a bisca de trunfo mesmo debaixo do ás da mesma pinta que o Bom-Senso jogara, para triunfante vitória deste e do Respeito, seu eterno compincha nas cartas. Vendo-a nervosa, tentei desviar o assunto para a leitura que a ocupava, não fosse dar o treco à Justiça que, como é do conhecimento geral, há muitos anos que sofre de ansiedade.
Foi então que a Verdade chegou, altiva nas suas felinas patinhas cansadas, e, num esforço admirável, saltou para o colo da dona. A Justiça acariciou-lhe o longo pêlo branco e sorriu-me:
- Até ela está velhinha e cansada, vês?
Ronronando, a gata enroscou-se e adormeceu. Assustou-se pouco depois, eriçando o pêlo quando a Lealdade acordou com o próprio ronco. Olhando confusamente em volta, esta tossiu para disfarçar a vergonha e pôs-se a conversar com a comadre do lado, fitando-lhe o tricot. E a pobre da Verdade tornou a dormir, sob as carícias da mão encarquilhada da Justiça, que suspirava.
- É assim…O mundo rejeita sempre os antigos. Houve tempos em que fizemos falta, aí sim, tudo nos seguia. Agora… - A Justiça riu baixinho. – Olha, filha, falta ainda podemos fazer, mas ninguém nos quer.
Procurei esconder o quanto concordava com a minha virtude favorita e recitei-lhe um poema qualquer em latim, que ela escutou deliciada. A Justiça sempre gostou do latim. Dei-lhe um beijo na bochecha e prometi voltar. À saída, a Dona Esperança, que era a ama de todas aquelas idosas e surdas e teimosas e cegas e débeis e senis e outrora majestosas virtudes, agradeceu a visita. Pediu-me para tornar lá e que trouxesse outros jovens comigo.
Não me atrevi a mentir tão desavergonhadamente ao ponto de lhe garantir que traria companhia, mas também não me pesou a consciência quando assegurei regressar ao Lar das Virtudes.